quinta-feira, 25 de setembro de 2008

outra

prá maria paula, 200 e prá xavantes, 79

----

Regresso ao Lar

Chegas - se é que se pode chamar
regresso ao gesto anónimo
e vacilante com que vais deixando
para trás a madeira suja dos degraus.

Nunca saberás se te trouxe
um táxi, que música te roubou
- ou se a falta de dinheiro
te fez apanhar o último autocarro.

Sabes apenas que encontraste
as chaves e que não despiste
a roupa onde volta a ser teu corpo.
Mas é-te impossível recordar
os rostos, o que disseram ou calaram,
o preço pago por tanto esquecimento.

Foi uma noite banal, portanto.
Nem amor nem sexo - apenas
a perfídia de seres tu, o espanto
com que ao fim da tarde acordas
e percebes que o mundo
não teve o bom senso de acabar.

Por isso sais - ou foges (vai dar
no mesmo) quando os vizinhos
regressam de mais um dia proveitoso,
dedicado à mecânica reprodução
do horror, da velhice e das taxas de juros.
Eles e tu movidos pela mesma nenhuma razão.

Não há, de facto, diferença.
Ou cedo deixarás de haver
e é como se nunca tivesse havido.
Os primeiros dentes de um filho
deixam-nos certamente tão felizes
como o tango que acompanha agora
estes versos escritos quase à hora de acordarem.

O desespero tudo permite, tornando
equivalentes o livro que acabaste de fechar
e as infindáveis telenovelas com que
premeiam o cansaço e garantem o sono.
Adormecendo eles e tu, apesar da diferença
horária, sobre a imagem nula daquilo
a que insistimos em chamar "amor".

Talvez amor. Não sabes. Desces
de novo os mesmos degraus,
fugindo da bonança que não há
e do irrmediável flagelo dos teus passos.
Pouco tens a dizer desse
desencontro, da noite fria que te espera.

Acreditas, uma vez mais, na morte.


- Manuel de Freitas

Um comentário:

João disse...

maria-mole, cigarro e esquecimentos.